Divergência entre a Lei 8.036/1990 e a MP 946/2020
A Lei 8.036/90 criada para regulamentar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, autoriza o trabalhador em estado de calamidade pública, a levantar os valores depositados.
O artigo 20, XVI, da Lei 8.036/1990, permite que a conta do FGTS posa ser movimentada em situação de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural. A alínea “a” do dispositivo determina que, para o trabalhador sacar a quantia, deve haver estado de calamidade pública decretado pela União Federal ou estado de emergência na área em que ele mora.
Diante de tantas dúvidas e novas regulamentações, faz-se necessário analisar alguns pontos que envolvem o tema.
1 – Trabalhadores
Todos os empregados urbanos e rurais têm direito ao FGTS, independentemente da duração do contrato (prazo determinado ou indeterminado).
Art. 7º, CF – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) III – fundo de garantia do tempo de serviço.
Aliás, os domésticos, com a Lei Complementar 150/2015, também passaram a ter direito aos depósitos do FGTS (de forma obrigatória):
Art. 34 – O Simples Doméstico assegurará o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes valores: (…) IV – 8% (oito por cento) de recolhimento para o FGTS.
2 – Decreto 6 de 2020 do Governo Federal
O Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo 6/20, reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de coronavírus (Covid-19).
Portanto, todos os requisitos legais para movimentação da conta vinculada estão devidamente preenchidos.
3 – Hipóteses de saque no caso específico
Como dito alhures, as hipóteses estão disciplinadas no artigo 20, da Lei nº 8.036/1990, especificamente no inciso XVI, vejamos:
XVI – necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento, observadas as seguintes condições:
a) o trabalhador deverá ser residente em áreas comprovadamente atingidas de Município ou do Distrito Federal em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo Governo Federal;
b) a solicitação de movimentação da conta vinculada será admitida até 90 (noventa) dias após a publicação do ato de reconhecimento, pelo Governo Federal, da situação de emergência ou de estado de calamidade pública; e
c) o valor máximo do saque da conta vinculada será definido na forma do regulamento. (nossos grifos)
Nesta situação de estado de calamidade pública, a sistemática para o levantamento dos valores do FGTS é a do “saque-rescisão” — a mesma de quando o empregado é dispensado sem justa causa.
4 – A pandemia do novo coronavírus (covid-19) está abarcada pelos requisitos da lei?
Bem, primeiramente para responder esta pergunta, devemos destrinchar parte do inciso XVI, onde diz “desastre natural”.
A lei não conceitua “desastre natural”, mas o Decreto nº 5.113/2004 traz a seguinte explicação:
Art. 2º Para os fins do disposto neste Decreto, considera-se desastre natural:
I – vendavais ou tempestades;
II – vendavais muito intensos ou ciclones extratropicais;
III – vendavais extremamente intensos, furacões, tufões ou ciclones tropicais;
IV – tornados e trombas d’água;
V – precipitações de granizos;
VI – enchentes ou inundações graduais;
VII – enxurradas ou inundações bruscas;
VIII – alagamentos; e
IX – inundações litorâneas provocadas pela brusca invasão do mar.
Parágrafo único. Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades.
Temos que o rol estabelecido pelo Decreto nº 5.113/2004 é meramente exemplificativo, ou seja, mesmo não existindo a palavra “pandemia” no referido Decreto, outros desastres naturais de grandes proporções, também não estão elencados, tais como tsunami, terremoto e outros.
Neste sentido, a jurisprudência do STJ e demais Tribunais regionais, já se posicionaram sobre o tema:
“(…) o Superior Tribunal de Justiça já assentou que o art. 20 da Lei n. 8.036/90 apresenta rol exemplificativo, por entender que não se poderia exigir do legislador a previsão de todas as situações fáticas ensejadoras de proteção ao trabalhador, mediante a autorização para levantar o saldo de FGTS. (…) 11. Por isso, têm direito ao saque do FGTS, ainda que o magistrado deva integrar o ordenamento jurídico, em razão de lacuna na Lei n. 8.036/90, com base nos princípios de interpretação constitucional da eficácia integradora e da unidade da Constituição, da concordância prática e da proporcionalidade em sentido estrito. 12. Recurso especial não provido.” (REsp 1251566/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA) (g.n.)
5 – Da Medida Provisória nº 946/2020 e o Decreto nº 5.113/2004
A MP nº 946/2020, no artigo 6º, assim estabelece:
(…) fica disponível, para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 1990, aos titulares de conta vinculada do FGTS, a partir de 15 de junho de 2020 e até 31 de dezembro de 2020, em razão do enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia de coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, o saque do FGTS. (g.n)
No próprio artigo 6, a MP estabeleceu um teto máximo de R$ 1.045,00 por trabalhador, restringindo, assim, o levantamento de valores que ultrapassem o valor do salário mínimo.
Já o Decreto nº 5.113/2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990 (FGTS), determina que:
Art. 4º O valor do saque será equivalente ao saldo existente na conta vinculada, na data da solicitação, limitado à quantia correspondente a R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais), por evento caracterizado como desastre natural, desde que o intervalo entre uma movimentação e outra não seja inferior a doze meses. (g.n.).
Chegamos ao ponto de embate, onde tem gerado inúmeras dúvidas e tem chegado aos Tribunais de todo País por uma solução.
Qual dispositivo legal deve prevalecer, já que ambos os instrumentos legais são de autoria do Governo Federal na pessoa do Presidente da República?
O artigo 62, §1°, IV, da Constituição Federal – CRFB, expõe que é vedada a criação de medidas provisórias sobre matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Parece-nos, salvo melhor juízo, que a edição da MP 946/20, vai de encontro com a constituição Federal, pois já existia instrumento legal que regulava o tema em comum.
A finalidade dos depósitos do FGTS na conta vinculada do trabalhador é formar um “patrimônio” para ser utilizado em momentos especiais (situações emergenciais).
Assim, existindo dois dispositivos de lei, onde o primeiro e mais antigo, é mais benéfico ao trabalhador e a atual crise econômica, e o segundo, sendo um limitador financeiro, tira do trabalhador garantias legais de seu próprio patrimônio, deve-se aplicar os Princípios Constitucionais de Proteção ao trabalhador, dentre eles “ Norma mais favorável e Condição mais benéfica”.
No que diz respeito à hierarquia normativa, tem-se, desde Kelsen, que a Constituição Federal ocupa o ápice axiológico do ordenamento jurídico. No entanto, no Direito do Trabalho, devido a sua essência protetiva, é possível a aplicação de norma inferior hierarquicamente, desde que mais favorável ao trabalhador.
Essa possibilidade de relativização da hierarquia normativa em prol do trabalhador se justifica justamente pela aplicação dos princípios de proteção ao trabalho, consolidados da CLT e amparados pela Constituição Federal de 1988.
Desta feita, destacasse que, nada obstante os termos da MP 946/2020, o limite de R$ 1,045,00 e autorização de saque apenas a partir de 15 de junho de 2020 não é impeditivo ao exercício do direito ao levantamento integral do FGTS, reforçando sobretudo o presente estudo e que a situação se mostra imprescindível para o enfretamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020.
O Tribunal Regional da 1ª Região (TRT-RJ), já enfrentou o tema nos autos do processo ROT 0101212-53.2018.5.01.0043, perante a 7ª Turma, no Gabinete da Desembargadora Raquel de Oliveira Maciel em decisão do dia 26/03/2020, vejamos:
ACÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE PASSIVA. UNIÃO. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. DEFESA DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. POSSIBILIDADE. FGTS. CEF. SAQUE. CALAMIDADE PÚBLICA. FINALIDADE SOCIAL. ROL NÃO TAXATIVO. 1. A legitimidade passiva da União para esta causa decorre de seu poder regulamentar, sendo o ente responsável pela análise do enquadramento dos casos de situação de emergência ou calamidade pública para fins de liberação do FGTS. 2. (…). 4. As hipóteses de saque previstas na Lei nº 8.036/90 não são exaustivas, mas meramente exemplificativas, devendo ser dada prevalência ao caráter social da norma quando em jogo o direito individual à vida, à saúde e à dignidade humana. Precedentes TRF 4ª Região.
5. Embora a situação dos autos não esteja elencada no inciso XVI do art. 20 da Lei nº 8.036/90, porquanto a situação de calamidade decretada pelo Município de Alvorada não foi reconhecida pelo Governo Federal, entendo que decorrem implicações de ordem constitucional que não podem ser afastadas, face ao comprometimento do Estado perante à sociedade, ao ser humano, quando se trata de direito assegurado pela lei ao trabalhador. 6. Apelações improvidas. (TRF4, AC 5064563-86.2012.4.04.7100, TERCEIRA TURMA, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 25/09/2014). (g.n.)
6 – Como realizar o levantamento dos valores acima de R$ 1.045,00
Uma vez que o governo federal não editou nenhuma norma prevendo a medida, o banco público, certamente, pode negar o pedido.
Dessa forma, o caminho mais seguro é acionar a Justiça do Trabalho, por meio de Advogado, pedindo liminar para autorizar o saque dos valores superiores ao salário mínimo.
É recomendável que o trabalhador comprove sua “necessidade pessoal”, através de provas de sua condição financeira e de sua família.
7 – Desfecho
Temos que é possível o levantamento dos valores depositados na conta vinculada do FGTS, por ser o FGTS um direito dos trabalhadores (Art. 7º, III, CF), tendo como base os princípios constitucionais e a própria finalidade do FGTS.